“O Diabo não é tão feio como o pintam! — Desenhos de Júlio Pomar”

 9.12.2021 — 10.02.2022

Biblioteca José Saramago (Campus 2) – “Autorretratos, outros temas e literatura”
Biblioteca do campus 3 – “Desenhos para Guerra e Paz”

A exposição polinucleada “O Diabo não é tão feio como o pintam! – Desenhos de Júlio Pomar”, realizada a convite do Politécnico de Leiria, na Biblioteca do Campus 3 (ESAD.CR) nas Caldas da Rainha, e na Biblioteca José Saramago em Leiria, desenvolve-se em dois tomos, procurando mostrar que o desenho foi um meio estruturante em toda a obra do artista. Desde a década de 40 ao final da sua carreira, por vezes assumindo um registo irónico, como no desenho que dá título à exposição, outras vezes apresentando-se como um exercício de observação e compreensão da realidade, outras ainda como um veículo de exploração plástica, Júlio Pomar reinventa possibilidades do desenho, dos seus instrumentos e suportes, ampliando e atravessando as diversas disciplinas para se mostrar transgressor de todas elas. Como refere o artista: «Desenhar será pôr em situação os elementos de uma relação».

Esta exposição, realizada a convite do Pró-Presidente do Politécnico de Leiria, Samuel Rama, insere-se no programa de itinerâncias do Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC, iniciado em 2015, o qual tem permitido mostrar e refletir sobre a obra de Júlio Pomar no contexto de outras instituições e regiões do país.

Tendo como ponto de partida a prática do desenho, e aquilo que no desenho parece sempre ter interessado a Pomar, isto é, “a vitalidade da linha e a justeza da alusão”, as obras do acervo do Atelier-Museu Júlio Pomar escolhidas para as diferentes partes desta exposição permitem sublinhar a ideia de desenho enquanto pensamento. Como perguntaria o próprio artista, num dos vários textos que publicou sobre o tema, “penso, logo desenho”?

A este propósito Pomar diz que «o desenho é desígnio, o registo de um propósito e da urgência deste registo tira a sua especificidade, a sua diferença, o seu encanto. O penso, logo existo transforma-se em penso, logo desenho. Entre desenho porque penso e penso porque desenho, a relação é imediata.»  O artista vai mais longe, reforçando o caracter de urgência associado a esta forma de expressão: «O desenho implica uma urgência, um pensar os objetos num espaço, e o pensar do espaço onde os objetos serão tão intrusos como um recém-nascido ou um fruto na árvore. Intrusos e certos.»

Não é apenas um, são múltiplos, os textos onde o artista fala sobre o desenho, fazendo dele objeto de reflexão teórica, ao longo do seu percurso. Para ele, «olhar um desenho é pôr o olhar à escuta das sonoridades desse traço, do que ele diz, do que sugere, do que ele cala». Assim é da relação entre a cabeça, que processa o que se vê, e a ação da mão sobre o papel que «o desenho se revela como o resultado dum pensamento itinerante».

Desse modo, pode dizer-se que mais do que a simples e virtuosa intuição do saber-fazer ou do saber desenhar bem, o desenho pode ser entendido como um saber-ver e um saber-pensar perante o desafio da representação de corpos, de objetos, de factos, de narrativas com que o artista se depara.

De facto, para Júlio Pomar, a noção de desenho estende-se a muitas coisas, a muitos ramos de atividade, tem muitas aplicações: «o desenho de um bordado, os desenhos de uma gravata, as linhas (ou o desenho) de um avião, o perfil, ou o desenho do nariz da nossa namorada, etc. Quer dizer: na vida prática, na linguagem corrente jamais restringimos a noção de desenho à cópia, ou à representação de determinado objeto».

Decorrente deste entendimento lato do desenho, na exposição, distribuída em espaços diferentes, pretende dar-se a ver como o artista consagra o desenho enquanto prática autónoma, não entendido como um meio subsidiário da pintura ou parente pobre desta.

Na sala de exposições da Biblioteca do Campus 3 (ESAD.CR), Caldas da Rainha, mostram-se desenhos da série que Júlio Pomar realizou para e a partir da obra literária de Tolstói. Nos anos 1950, Júlio Pomar ilustrou uma edição de Guerra e Paz que seria distribuída em fascículos. No entanto, a circulação desses fascículos viria a ser proibida pela PIDE.

Na altura, Júlio Pomar fez dezenas de estudos, utilizando pincel japonês, alguns dos quais poderão ser vistos nesta sala de exposições localizada na biblioteca da Escola Superior de Arte e Design. Segundo o artista: «tinha eu descoberto pouco antes o pincel dito japonês (inventado pelos chineses), e trazido de Paris após a descoberta de Hokusai e dos calígrafos Zen. Ele deve ser sustido entre o polegar e o indicador, caindo verticalmente sobre o papel que repousa na horizontal, sobre uma mesa baixa. É a mobilidade do pulso que gera a fluidez do traço, e este será substituído pela articulação do cotovelo se um gesto mais largo se impõe.  A linha acontece fina se for só a ponta do pincel a tocar o papel e a espessura do traço variará conforme o pincel se recline ou descanse lateralmente sobre a superfície que macula. As possibilidades deste maravilhoso instrumento, comum à escrita e ao desenho (e entre desenho e pintura o Oriente não vê diferença), não têm comparação com as do pincel ocidental, por mais sedoso que seja o pelo da marta com que foi feito. Talvez a diferença entre um e outro seja a mesma que existe entre um belo corpo nu e uma carne espartilhada. Enquanto um respira a sua liberdade (felina?), o outro responde conforme as conveniências.»[1]

A série para Guerra e Paz, de Tolstoi, mostra como, para o artista, o desenho em geral era um catalisador de forças motrizes, levando-o a deter-se por longos períodos em determinados assuntos ou temáticas.

«O desenho é escrito de um ponto a outro ou do princípio ao fim sem possibilidade de apagar ou esconder erros ou hesitações. Há que recomeçá-lo tantas vezes até que o seu todo consiga a verdade necessária. (…) Destes desenhos, repetidos até que a síntese seja encontrada e se produza de um jacto, uma boa parte vai direita para o barril do lixo e só quando a articulação das formas se começa a definir em sua clareza ritmada, quando um discurso está em vias de se organizar com o mínimo de coerência e o que se diz ou pinta deixa de ser balbuciante, é que os exercícios começarão a ser guardados. Acabei por aprender que a melhor das versões não é a última, quando se julga o todo harmonizado de vez, mas uma das precedentes, na qual uma ponta de indecisão, uma fraqueza involuntária confere ao desenho a verdade da respiração que possibilita o equilíbrio, e ao rigor acrescenta a marca involuntária da mão.»[2]

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[1] (Do ilustrador», in Júlio Pomar — Desenhos para Guerra e Paz de Tolstoi (cat.), Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, Lisboa, pp. 11-13

[2] Ibidem

Desenhos para Guerra e Paz, de Tolstoi / Caldas da Rainha
© António Jorge Silva / AMJP /Fundação Júlio Pomar / SPA

Na Biblioteca José Saramago, em Leiria mostram-se um conjunto de autorretratos do artista, realizados em diferentes momentos da sua vida, bem como obras que decorrem da relação que Júlio Pomar estabeleceu com a literatura e que permitem perceber a indissociabilidade entre desenho, escrita e edições para este autor. Essa relação não passava jamais pela ilustração no seu sentido estrito, mas antes por um movimento de amplitude que potenciava os campos da literatura e das artes plásticas, tecendo elos entre os mesmos, fertilizando-os, fecundando-os.

Autorretratos, outros temas e literatura / Leiria
© António Jorge Silva / AMJP /Fundação Júlio Pomar / SPA

Nota biográfica de Júlio Pomar

Nasceu em 1926 em Lisboa. Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e as Escolas de Belas-Artes de Lisboa e Porto, tendo participado em 1942 numa primeira mostra de grupo, em Lisboa, e realizado a primeira exposição individual em 1947, no Porto, onde apresentou desenhos. Nesses anos a sua oposição ao regime de Salazar acarreta-lhe uma estada de quatro meses na prisão, a apreensão de um dos seus quadros pela polícia política e a ocultação dos frescos com mais de 100 m2, realizados para o Cinema Batalha no Porto. Permanece em Portugal até 1963, ano em que se instala em Paris. Viveu e trabalhou entre Paris e Lisboa até falecer em Maio de 2018 em Lisboa.

De uma obra que se prolonga por sete décadas, o autor destaca, após o período inicial, dito neorrealista, as exposições «Tauromachies» e «Les Courses» (Galerie Lacloche, Paris, 1964 e 1965); a participação numa mostra dedicada ao quadro de Ingres Le Bain Turc pelo Museu do Louvre (1971); as séries de pinturas Mai 68 (CRS SS) e Le Bain Turc (Galeria 111, Lisboa); as exposições «L’Espace d’Eros» (Galerie de la Différence, Bruxelas, 1978) e «Théâtre du Corps» (Galerie de Bellechasse, Paris, 1979); «Tigres» (Galerie de Bellechasse e Galeria 111, 1981 e 1982); «Um ano de desenho – quatro poetas no Metropolitano de Lisboa» (estudos preparatórios para a estação Alto dos Moinhos) em 1984 no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, que já em 1978 promovera a sua primeira exposição retrospectiva; «Ellipses» (Galerie de Bellechasse, Paris, 1984); e «Mascarados de Pirenópolis» (Galeria 111, ARCO, Madrid, 1988).

No início da década de noventa, uma estada no Alto Xingú, na Amazónia, está na origem das exposições «Los Indios» (Galeria 111, ARCO, Madrid) e «Les Indiens» (Galerie Georges Lavrov, Paris), em 1990, a que se segue «Pomar/Brasil», antologia organizada também pelo CAM e apresentada em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa. O Ministério da Cultura francês convidou Júlio Pomar a realizar um retrato de Claude Lévi-Strauss, que precedeu o do presidente Mário Soares para a galeria oficial do Palácio de Belém (1991). Seguiram-se as exposições «Pomar et la Littérature» (Charleroi, Bélgica, 1991), «Fables et Portraits» (Galerie Piltzer, Paris, 1994), sendo a temática ficcional retomada em «O Paraíso e Outras Histórias» (Culturgest, Lisboa, 1994), e «L’Année du cochon ou les méfaits du tabac» (Galerie Piltzer, 1996). A presença da Amazónia reaparece em «Les Joies de Vivre» (Galerie Piltzer, 1997) e «Les Indiens – Xingú 1988-1997» (Festival International de Biarritz). A série La Chasse au Snark é mostrada em Paris (Galerie Piltzer, 1999) e em Nova Iorque (Salander-O’Reilly Gallery, 2000).

Mostrou «Pinturas Recentes», inéditas em Portugal, no Centro de Congressos de Aveiro em 2000, e em 2002 volta à Galeria 111 com a exposição «Os Três Efes – Fábulas, Farsas e Fintas», a que se sucedem «Trois travaux d’Hercule et quelques chansons réalistes» e «Méridiennes –Mères Indiennes» (Galerie Patrice Trigano, Paris, 2002 e 2004); «Fables et Fictions», esculturas e suas fotografias por Gérard Castello-Lopes (Galerie Le Violon Bleu, Sidi Bou-Said, Tunísia, 2004), que se prolonga em «A Razão das Coisas», assemblages e bronzes, também fotografados por José M. Rodrigues, Casa de Serralves, Porto (2009, depois itinerante).

Em 2004, Marcelin Pleynet comissariou uma exposição antológica no Sintra Museu de Arte Moderna – Coleção Berardo a que deu o nome «Autobiografia», e as décadas recentes da obra de Júlio Pomar foram antologiadas por Hellmut Wohl no Centro Cultural de Belém, sob o título «A Comédia Humana». Em 2008, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, incluiu numerosas assemblages inéditas na mostra «Cadeia da Relação», comissariada por João Fernandes. Em 2009 expôs «Nouvelles aventures de Don Quixote et Trois (4) Tristes Tigres» (Galerie Patrice Trigano), e em 2012-13 «Atirar a albarda ao ar» na Cooperativa Árvore, Porto, e Galeria 111, Lisboa.

Além da obra de pintura, desenho, escultura, cerâmica, gravura, etc., Júlio Pomar escreveu Catch: thèmes et variations, Discours sur la cécité du peintre, …Et la peinture? (Éditions de la Différence, Paris, 1984, 1985 e 2000), os dois últimos traduzidos por Pedro Tamen com os títulos Da Cegueira dos Pintores (Imprensa Nacional, 1986) e Então e a Pintura? (Dom Quixote, 2003); e duas coletâneas de poesias Alguns Eventos e TRATAdoDITOeFEITO (Dom Quixote, 1992 e 2003).

Júlio Pomar instituiu em 2004 uma Fundação com o seu nome. Em Abril de 2013, inaugurou o Atelier-Museu Júlio Pomar, criado pela Câmara Municipal de Lisboa, em edifício que adquiriu na Rua do Vale n.º 7, Mercês, Lisboa, o qual contou com um projeto arquitetónico de reabilitação da autoria de Álvaro Siza Vieira.

 

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