“Rumble Strip” – Exposição de escultura de Andreia Santana

 
  • Biblioteca Campus 3 (ESAD.CR) | 06.05.2021 — 25.07.2021

O campo do escultórico esteve e continua em constante transformação de si mesmo via teste dos seus limites. O termo escultura não é definível de modo estático na medida em que só se situa num processo contínuo de transformações, a tal ponto que podemos apelidar como «escultura» uma fotografia, ou uma peça sonora como as que a Andreia Santana produziu. No entanto, três características sobreviveram desde a pré-história, passando pela estatuária, escultura em sentido estrito e escultura no campo expandido, são elas o desenho, o espaço e a ideia de ausência.

De todas estas caraterísticas no trabalho agora exposto no Politécnico de Leiria, o desenho adquire relevância central. E de facto podemos comprovar que o desenho sempre esteve presente na prática tridimensional, o desenho feito pelas construções megalíticas inseridas na terra e orientadas para o céu, o desenho que antecipa o contorno linear da estatuária e se mostra recortando a massa contra o fundo, o desenho como lugar de encontro dialogando entre as forças da matéria e as que vêm em direção a ela, em grande parte da escultura modernista, o desenho de projeto como exaltação do pensamento, desígnio e decisão. Mas é também, o desenho marcado de novo na terra pelos artistas da Land Art, um desenho que se apaga no lugar pelo decurso do tempo, mas que pode ser cristalizado, registado através da fotografia ou do vídeo.

O espaço é também um assunto central na escultura, desde a noção de espaço enquanto marcação de um lugar, ou forma de negar o caos nas estruturas megalíticas, passando pela noção de espaço despoletado pela hierarquia da estatuária, o espaço do monumento e a sua vinculação à obrigação evocativa, o espaço passivo de alguma da estatuária e o espaço activo de algumas esculturas modernistas como de H. Moore ou Eduardo Chillida. A escultura também é caraterizada por um espaço penetrável, como acontece com a Merzbau de Kurt Schwitters e o Espaço Proun de El Lissitzky. Porém, na escultura, teremos de considerar também o espaço enquanto lugar de encontro, de convivialidade, holístico, com dimensões estéticas, éticas, políticas e sociais, que adquire especial importância nas propostas dos artistas mais recentes. 

Finalmente, a escultura, quer se chame estatuária, escultura em sentido estrito ou escultura no campo expandido, define-se pela ideia de ausência. A ausência não é o vazio, mas pressupõe que alguma coisa “esteve lá”, mas já não está, deslocou-se. Assim, escultura é sempre representação, apresentação, expressão ou constatação de uma perca, é sempre a evocação de uma ausência enquanto presença.

A proposta expositiva de Andreia Santana intitulada Rumble Strip, problematiza o espaço e a noção de ausência a partir da disciplina do desenho tridimensional. Um desenho que se encontra numa situação instável, mas por isso produtiva, porque tanto segrega espaço ou parece justificar a sua amplitude ambiental, como aponta para as estratégias da forma, do objeto fechado sobre si próprio, típico da escultura da primeira metade do século XX.

Mas é bom lembrar que a artista trabalha a partir das lógicas lineares e planares dos materiais próprios da indústria. As peças que atualmente podemos experienciar surgiram durante uma residência artística no contexto da indústria, na Artworks no Porto – fábrica onde desenvolveu e experimentou o seu trabalho. O que acontece às linhas de cobre entre a sua condição industrial e a sua condição de arte é quase evocativo do processo de desenho de Paul Klee. Para este artista da primeira metade do século XX “O que importa é captar o movimento de intercâmbio entre interrogações e respostas, Como? – Através da alternância entre gesto e figura pura”. quer dizer, as esculturas na sua instabilidade referem-se tanto ao corpo que as desenha quanto aquele que as frui, apontam lugares de estabilidade como lugares de fuga. Estabilidade, no apoio ou quase figura, lugares de fuga, pelo movimento, dificuldade em reconhecer figura ou equivalente no mundo ordinário dos objetos e dos acontecimentos.

Também aqui Paul Klee nos pode ajudar nomeadamente na sua distinção entre via inferior e via superior. Para este artista a via inferior termina no “domínio das formas estáticas ao passo que a via superior dá acesso ao domínio dinâmico (…) Na via inferior, que passa pelo centro da Terra, temos problemas de equilíbrio estático, que podemos caracterizar do seguinte modo: manter a posição vertical perante objectos que nos podem fazer cair. Somos conduzidos às vias superiores pela necessidade de cortar os laços que nos ligam à Terra, avançando, a nadar ou a voar, para a liberdade completa, para a liberdade de movimento.”

Podemos dizer que cada escultura de Andreia Santana é um desenho, e que cada desenho é uma ideia muito próxima do potencial do corpo. Nenhuma delas parece evocar a gravidade apesar da maioria tocar no chão. A desvalorização expressiva da gravidade coloca a tónica no gesto, na vida, no movimento e na intensidade.

Samuel Rama, 09 de Abril de 2021

 

NOTA BIOGRÁFICA

Andreia Santana (1991, Lisboa) vive e trabalha em Nova Iorque. Licenciada em Artes Plásticas na ESAD – Escola de Artes e Design de Caldas da Rainha, foi participante do Programa de Estudos Independentes em Artes Visuais da Maumaus em Lisboa e é actualmente bolseira do programa de Studio Art da CUNY, Nova Iorque. Tem participado em vários programas de residências artísticas, nomeadamente a Residency Unlimited (Nova Iorque) com bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, Panal 360 (Buenos Aires) e Gasworks – Triangle Network no Hangar (Lisboa). Foi vencedora do Prémio Novo Banco Revelação, nomeada para o Ducato Prize (Itália) e foi recipiente de bolsas incluindo a Fulbright/Fundação Carmona e Costa, Criatório – CMP, Amadeo Souza Cardoso, e Fundação Calouste Gulbenkian – Delegação de França, entre outras.

Expõe regularmente em Portugal e no estrangeiro, com destaque para as exposições: ‘The Skull of the Haunted Snail’, Hangar, Lisboa; ’Hollow Hands’ no Spazio Leonardo, Generali Milano; ‘The Outcast Manufacturers’ Galeria Filomena Soares; 10000 anos entre Venus e Marte, Galeria Municipal do Porto; ‘Cultivated Memory’, Peninsula Gallery. Nova Iorque; ‘História da Falta’ no Museu de Arte Contemporânea de Serralves; ‘Ponto de Fuga’, Cordoaria Nacional; ‘Ghost of Chance’, La Nave, Madrid; ’10 Anos, 10 Artistas, 10 Comissões’, Chiado 8, Lisboa; ‘Now It Is Light’ Galeria da Boavista, Lisboa; ‘The Lobster Loop’, MONITOR, Lisboa.


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FICHA TÉCNICA:

Programação e Curadoria
Samuel Rama

Produção
Bibliotecas dos Serviços de Documentação do Politécnico de Leiria
Sónia Gonçalves

Design Gráfico
Francisco Moreira

Comunicação
Francisco Moreira, Liliana Gonçalves, Sónia Gonçalves

Agradecimentos
Andreia Santana
Bruno Leitão – HANGAR – Centro de Investigação Artística 
Galeria Filomena Soares
ArtWorks