As cartas possuem sempre destinatários, ainda que sejam “cartas abertas” a um público, ou ainda que se percam e não cheguem nunca aos seus destinatários. O destinatário está de algum modo presente no ato da escrita, e não apenas no da leitura. As “cartas para si próprio”, supõem um destinatário, ainda que este seja distante porque desfasado no tempo, está no passado (e por isso apenas pode ser lembrado) ou está no futuro (e por isso apenas pode ser imaginado).

Mas, esse destinatário introduz-se na relação que alguém estabelece consigo ao escrever uma carta para si, provocando um distanciamento crítico em relação a si, ou, pelo menos, criando e exercendo uma não coincidência consigo próprio.

As cartas entre quaisquer pessoas tendem a gerar sempre uma outra pessoa porque algo nasce ou se revela em quem escreve por causa dessa relação por correspondência. Para além desse “outro” (Coelho, 1982) que assim se introduz e que rompe um ensimesmamento possível; as próprias operações da escrita contribuem para esse efeito (Zweig, 2020) na escrita objetivamos através das palavras que escolhemos; deixamos marcas visíveis e que circulam; fixamos de forma durável e podemos mais tarde voltar a esses registos.

O diário está habitualmente ainda mais próximo da esfera pessoal do que a carta. Virgílio Ferreira (1981) mostrou isso ao escrever na sua “Conta-Corrente I” que o diário, ao contrário da literatura, é um ato de se despir sem biombo.

Muitos diários são exercícios em que o autor estabelece uma relação nua e crua consigo próprio e com o que lhe acontece, (ainda que os diários sejam públicos). Essa relação é a difícil relação em que somos completamente honestos connosco próprios, e assim nos mostramos a nós próprios; exercício que não deve ser confundido com nenhuma “espontaneidade”; solidão que não deve ser confundida com nenhum “isolamento” face aos outros. Estes diários, tal como estas cartas, possuem uma dimensão de construção criativa – pelas razões já apontadas e pelos modos de fazer do diário gráfico. O diário gráfico possui técnicas diferentes da escrita. Frequentemente, a visualidade fixada é sintética e não analítica como as palavras num discurso; e a imagem possuí muitos níveis de sentido, é sempre polissémica contrariamente à palavra discursiva que tende a ser unívoca no seu sentido (Aumont, 2020).

Fernando Poeiras